“O desafio do Estado e da sociedade como um todo é conseguir evitar que nesse processo, quando gradualmente diminuir a presença da classe média, o lumpesinato e o tráfico não venham a ocupar o espaço e levar o protesto para o campo do saque e da violência, inclusive da bélica”
Na quinta-feira (20), ao comemorar a sua vitória em relação ao recuo no aumento de 20 centavos das tarifas de ônibus, o movimento pode ter chegado ao seu auge, em termos de mobilização e ter iniciado um descenso que poderá ser mais ou menos demorado, mais ou menos organizado e mais ou menos pacífico (ou violento…).
A grande questão será gerir o descenso de massas, sempre inevitável, deixando algum acúmulo de organização e de um mínimo de conteúdo programático, de medidas concretas, factíveis.
O desafio do Estado e da sociedade como um todo é conseguir evitar que nesse processo, quando gradualmente diminuir a presença da classe média, o lumpesinato e o tráfico não venham a ocupar o espaço e levar o protesto para o campo do saque e da violência, inclusive da bélica.
Episódios sintomáticos já ocorreram. A situação da periferia de São Paulo, com o PCC à espreita, é particularmente perigosa. No Rio pode vir um “troco” pelas UPP e pela expulsão do tráfico de parte das favelas. Todo cuidado é pouco.
Política e corrupção
Quanto ao impacto, de curto prazo, de tudo que acontece na política institucional, não consigo ser muito otimista. O sistema de partidos é dominado pela cultura clientelista-assistencialista-fisiológica que emana do nosso sistema eleitoral hiper-individualizado.
Os partidos que tentaram se diferenciar disso, a partir dos anos 80, como o PT e o PV, fracassaram nesse propósito. Foram “fagocitados” pela cultura política emanante do sistema eleitoral ao terem que se abrir em demasia para buscar o “quociente eleitoral” ou, no caso do PT, para consolidar-se no poder cooptando quem comandava os currais e os grotões.
Atuei intensamente na comissão de reforma política relatada pelo Henrique Fontana propondo o “voto distrital misto plurinominal”, mas nem isso nem nada mais sobreviveu ao bloqueio liderado pelo líder do PMDB, Eduardo Cunha.
A reforma política “pariu um rato”, um casuísmo: o projeto de Lei Edinho Araujo feito para prejudicar a criação da Rede, do Solidariedade e da fusão PPS/PMN, a Mobilização Democrática.
“Abaixo a corrupção” é fundamental, mas se desdobra no tempo e dependerá de um funcionamento melhor de diversas instituições.
Não há medida de curto prazo capaz de lancetar o abscesso da corrupção na forma expedida que parece emanar da indignação: uma denúncia na mídia seguida de julgamento pelas redes sociais e linchamento em praça pública. Isso poderá aplacar a sede por bodes expiatórios, mas não vai melhorar o padrão ético do país nem mexer numa cultura de Lei do Gerson que vai muito além dos “políticos”.
Acaso os “políticos”, em particular os parlamentares atuais, vieram de Marte? Cairiam do céu? Ou foram eleitos por alguém?
“Saúde-educação” para além do enunciar
“Saúde”, “educação”!!! Quem tiver uma “bala de prata” ou um atalho, que exponha esse deus-ex-machina. Pessoalmente não conheço!
Na educação, vejo o nó górdio na má qualidade do ensino secundário e na necessidade de manter os adolescentes pobres na escola. É preciso urgentemente melhorar a qualidade do ensino nos três níveis.
Na saúde, os hospitais são um sorvedouro sem limite e a grande questão é reduzir a pressão da demanda sobre eles mantendo as pessoas saudáveis.
Com saneamento básico (mais de 90% das internações provêm de doenças de veiculação hídrica), promoção da alimentação saudável e balanceada, prevenção de acidentes e uma medicina preventiva eficaz: a ampliação da Saúde da Família.
Nisso tudo poderá haver avanço, mas, não nos iludamos, ele será lento.
Ao ouvir o discurso tradicional de esquerda parece que a solução seria, simplesmente, alocar mais verbas e aumentar salários. Infelizmente isso, por si só, não resolve o problema da qualidade do ensino e do atendimento.
É preciso melhorar essa qualidade e para tanto poder remunerar a qualidade de forma diferenciada.
Dá para avançar na mobilidade urbana!
Lá onde dá para avançar mais longe e mais rápido é justamente lá onde tudo isso começou: na mobilidade urbana.
– Parar de subsidiar a compra de carros e priorizar obras para o automóvel.
– Usar esses recursos no transporte de massas e coletivo.
– Aumentar o tempo de validade do bilhete único para 3 horas.
– Multiplicar investimentos em BRT, BRS, VLT, transporte hidroviário, ciclovias e oferta de bicicletas.
– Instituir a taxa de congestionamento com pedágios eletrônicos em horários e trechos intensamente demandados.
– Acabar com o subsídio da gasolina e instituir, gradualmente (compensando socialmente), a taxa de carbono em substituição a outros tributos (para não aumentar a carga tributária).
Enfim, o movimento pode terminar melhor exatamente lá onde começou lutando por esses pontos concretos e factíveis.