Imagine trabalhar e, no final do mês, ser obrigado a repassar parte do seu salário para o chefe imediato. Parece absurdo, mas essa seria uma prática comum na Assembleia Legislativa do Pará e em muitos legislativos Brasil afora. Deputados embolsariam parte da remuneração de servidores considerados de confiança. No Estado, um exemplo de como essa fraude funciona foi enfim documentado em áudio. Gravações em poder do Ministério Público do Estado mostram como funcionava o esquema no gabinete do deputado Divino dos Santos (PRB).
Os áudios foram feitos ao longo de 2011 e no início deste ano e mostram servidores do gabinete de Divino sendo orientados a depositar parte do salário na conta do partido. O desconto varia de 10% a 5% e atinge todos os servidores. O pior, contudo, é que, entre aqueles que recebem salários maiores, o repasse compulsório pode chegar a 50% e boa parte seria embolsada pelo próprio deputado, que justifica o confisco como necessário para atender aos compromissos que assumiu com obras da igreja a que pertence. Divino é pastor da Igreja Universal do Reino de Deus.
“Você vai receber R$ 3.417. Me ajuda com mil e o restante paga os impostos e fica”, diz o deputado em uma das gravações que o DIÁRIO teve acesso com exclusividade.
O servidor que participa do diálogo ainda pede detalhes sobre a contribuição ao partido, ao que o deputado responde: “Dez por cento do líquido [para o partido] e os mil reais são para nossas atividades. Fechado?”, indaga o parlamentar. O servidor concorda.
Em outra conversa, Divino dos Santos afirma que a contribuição partidária é uma determinação da direção nacional do PRB em Brasília. “Chegou uma portaria de Brasília. Todo mundo vai ter que ajudar”.
Em outra conversa, o deputado é ainda mais explícito e deixa claro que o esquema pode ser ainda maior. “O teu salário líquido vai para quanto? O líquido só para você”, indaga a uma servidora que informa receber R$ 1500.
“Tu vais ganhar líquido a mesma coisa. Tá bom, que vai ficar líquido para você. Dos três mil e oitocentos, tiras os 10% direitinho para depositar na conta do partido. Já veio a portaria de Brasília. Tira 10% bruto de quem tem mandato e 10% líquido de quem não tem”, explica o deputado.
Quando a servidora que participa da conversa pede para falar de outro assunto, o deputado interrompe: “Não tem como se livrar disso, não”. A servidora então explica que gostaria de apenas em um mês não dar a contribuição que fica com o parlamentar. Justifica que teve problemas pessoais e por isso vai precisar do salário integral. Divino aceita, mas ressalta que nos próximos meses a ajuda não poderá faltar. “Vou precisa que você me ajude depois. Eu vou receber um salário de manhã para depois, que é o chamado auxílio paletó, mas esse eu vou depositar integral na conta da nacional. A partir de todo mês, vamos fazer duas contribuições, que é para comprar os veículos e [trecho incompreensível] para o partido no Estado e também para a nacional. Então, a gente tem que dar um jeito de ajudar mais, mas aí a gente vê. Não tem como ver isso agora, porque a gente não conhece como funciona a estrutura da Assembleia. Se precisar de você para ajudar de outra forma, a gente vê outro valor em cima desse. Não comenta com ninguém, absolutamente com ninguém, para não criar comentários que nem todo mundo vai ganhar esse valor. Qualquer situação é motivo para criar caso”, adverte o deputado.
Servidores afirmam: Divino repassa apenas 10% do valor de tíquetes
A notícia de que o assunto havia se tornado alvo de investigação do Ministério Público gerou novas denúncias de servidores indignados com a obrigação de contribuir. Na semana passada, o DIÁRIO foi procurado por seis funcionários do gabinete do deputado do PRB. Nenhum deles quis se identificar, mas todos reclamaram da mordida nos salários. Uma das queixas mais frequentes é quanto ao tíquete alimentação. Embora o valor do tíquete da Assembleia seja de R$ 600 por servidor, no gabinete de Divino dos Santos, os trabalhadores recebem apenas R$ 60. Todas as denúncias foram documentadas em áudio e algumas conversas foram registradas também em vídeo.
O material foi entregue ao promotor Arnaldo Azevedo, que desde o ano passado vem investigando fraudes na Assembleia Legislativa do Pará. Azevedo explica que, pelo regimento da AL, “o tíquete é para os servidores, não para os deputados”.
Sobre embolsar parte dos salários, mesmo com o argumento de que o dinheiro iria para obras sociais, o promotor diz não ter dúvidas. “É uma conduta criminosa e improba”. Azevedo explica que no momento prefere não enquadrar o comportamento do deputado no código penal porque a decisão caberá ao procurador geral de Justiça do Estado, Antônio Eduardo Barleta de Almeida, a quem o material será enviado nesta semana. É que, como tem foro privilegiado, Divino dos Santos não poderá ser processado na primeira instância.
Especialistas ouvidos pelo DIÁRIO dizem que o deputado pode ser processado por constrangimento aos servidores e peculato (roubo do dinheiro público).
Na última sexta-feira, o jornal tentou contato com o deputado por telefone. Divino não atendeu as chamadas. A reportagem deixou recados em sua secretária eletrônica, mas até o fechamento desta edição não houve retorno.
Divino: AL paga doméstica, viagens e até canal de sexo
As investigações envolvendo o pastor Divino incluem o pagamento, pela Assembleia Legislativa (com dinheiro público), de empregada doméstica, viagens a passeio e até a assinatura de TV fechada, incluindo canal adulto.
A assinatura de TV custa mensalmente a R$ 313,17. O pastor tem o pacote “HD TV Super” da operadora Sky, que inclui um canal de sexo voltado para adultos, conforme a documentação enviada ao MP. A conta era apresentada todos os meses à AL, que reembolsava o parlamentar. Divino alega que a assinatura se justificava porque em seu apartamento na travessa Três de Maio, em Belém, funcionaria um escritório político. A mesma justificativa foi dada para o trabalho de Camem Lúcia Lobo, que seria empregada doméstica do deputado, mas foi nomeada, pela AL, como secretária parlamentar nível 3. Imagens mostram a empregada de Divino nos meses de novembro do ano passado entrando e saindo do edifício onde o deputado mora. Em alguns casos, ela chega com compras.
Em fevereiro deste ano, o DIÁRIO teve acesso a notas de hospedagem em um flat nos Lençóis Maranhenses, além de passagens aéreas de viagens feitas durante feriados que foram incluídos como despesas ligadas ao mandato - e por isso reembolsadas pela AL. Na época, Divino garantiu que o pedido de ressarcimento havia sido um erro cometido por sua chefe de gabinete.
A notícia provocou revolta entre os servidores, que passaram a fazer novas denúncias. A maioria deles foi indicada ao gabinete de Divino dos Santos pela igreja Universal do Reino de Deus e não esconde a decepção com o político, a quem consideravam um líder religioso.
“Não é isso que a gente aprende na igreja”, garantiu o marido de uma servidora que também procurou o DIÁRIO para engrossar as denúncias - e que afirma estar recebendo ameaças de morte por telefone.
ENTENDA:
FLAGRANTE
Gravações acessadas pelo MP mostram servidores do gabinete do deputado Divino dos Santos (PRB) sendo orientados a depositar parte do salário na conta do partido.
GLUTÃO
Os descontos variam de 10% a 5% e atingem todos os servidores. Os com salários maiores repassam até 50% do salário ao deputado.
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